Lá em casa era cheio de tabus. O Natal pra mim era a pior época do ano. Não podia pedir Barbie, panelinha, maquiagem, filme da Disney, nada disso. Eu nunca ganhava nada do que eu queria - só algumas roupas sem graça, bola, videogame, jogo de tabuleiro, essas coisas. Acho que eu tinha todos os jogos de tabuleiro do mundo, de tanto que eu ganhava. Aos 4 anos já não acreditava mais em Papai Noel.
Quando eu ia com a minha mãe nas Lojas Americanas, sempre passava de fininho no corredor das Barbies, só para admirar um pouco. Elas eram tão bonitas. Depois, eu perguntava para a minha mãe:
- Mãe, por que eu não posso ter uma Barbie?
- Minha filha, as meninas que brincam de Barbie, quando viram mocinhas, querem ficar magras iguais à ela e, por isso, acabam fazendo coisas malucas e ficando doentes. Elas deixam de comer, ou às vezes vomitam depois de comer.
Aquilo não fazia sentido para mim. Eu olhava para todas as minhas coleguinhas e suas coleções de Barbies e não conseguia imaginá-las fazendo aquilo depois de crescidas. Às vezes, eu perguntava se elas tinham vontade de ficar igual à Barbie. Algumas diziam que sim, porque ela era muito bonita. Outras diziam que não, porque não gostavam de cabelo loiro. Outras diziam "sei lá, ela é só uma boneca".
Na escolinha, sempre que tinha teatrinho, aula de culinária, contação de história, brincadeira de fantasia, minha mãe ia lá e brigava com a professora. Dizia que ela estava "estragando" a minha educação. Eu morria de vergonha quando ela fazia isso. Eu gostava das atividades. Aos poucos, a escola foi deixando de fazer essas coisas legais.
Antes de dormir, eu pedia para ela me contar histórias, mas depois fui desistindo de pedir. As histórias da minha mãe eram chatas. Eu gostava de histórias de fantasia, com fadas, bruxas, duendes, magia. Minha mãe ficava contando a biografia de umas tais de Amelia Earhart, Rosa Luxemburgo, Marie Curie, Rosa Parks, que eram um saco. Eu não conseguia entender a graça que ela via nessas histórias, parecia mais uma aula.
Depois que eu fiz uns 5 anos, ela disse que era melhor eu parar de usar vestido e saia, porque era desconfortável quando eu quisesse brincar de correr, esconder, pular - e ela também não queria ficar lavando. No início eu até gostei, porque realmente era mais confortável. No entanto, nas festinhas, todas as meninas estavam lindinhas, de vestidinho, cachos e lacinhos - e eu sempre de camiseta suja, rabo de cavalo e shorts. Me sentia feia ao redor delas. Uma hora, também, minha mãe decidiu que não ia mais comprar coisa rosa para mim, porque era "cor de menininha". Eu não entendi. Eu era uma menininha.
Depois da festa dessa menina chamada Yasmin, cujo tema era o da Bela Adormecida, eu voltei para casa chorando. A Yasmin tinha tudo o que eu queria e que a minha mãe não me deixava ter. Minha mãe entrou no quarto perguntando qual era o problema, e eu falei que estava brava com ela. Que ela não me amava de verdade, que ela preferia que eu tivesse nascido menino. Ela se sentiu culpada e resolveu me dar um presente incomum - ela me deu o filme da Cinderela. Eu fiquei muito feliz. Assim que eu cheguei em casa, fui ver. Via todos os dias. Mas começou a ficar insuportável assistir depois de um tempo. A cada segundo, minha mãe chegava e falava:
"Viu, filha, como a Cinderela é boba de ficar obedecendo a madrasta desse jeito em vez de fugir?" ou
"Se ela fosse mais esperta, ia arranjar um emprego e se mudar logo daí" ou
"Você acha mesmo que ela ficou bonita com esse vestido todo empiriquitado?" ou
"Você sabe que não dá pra se apaixonar por alguém só porque dançou com ele, né?" ou
"Aposto que o príncipe vai fazer ela trabalhar igual a madrasta fazia" ou
"Ou então ela vai virar uma mimada e tratar as empregadas do castelo igual a madrasta fazia com ela".
Eu já tinha cansado. Comecei a parar de obedecer minha mãe desde esse dia. Ia para a casa das amigas brincar de Barbie e casinha em segredo. Na minha listinha de Natal, que eu não deixei minha mãe ver, só pedi coisa que ela proibía e alguns vestidinhos bonitinhos também. Cansei de brincar de bola, de correr e de pular, porque alguma menininha metida falou que eu parecia um menino gostando dessas coisas e isso me afetou muito. Eu não queria parecer um menino, eu queria parecer eu mesma. Quando minha mãe perguntava o que eu queria ser, eu sempre respondia "presidente", mas, só de raiva, passei a responder "atriz e modelo", para ela ter uma daquelas crises dela.
E aconteceu a vingança. No Natal, eu estava super feliz, cheia de expectativas. Ajudei meus avós a arrumar a casa, assar o peru e tudo. Hora dos presentes, primeiro presente:
um livro sobre sexualidade. Fiz careta, minha mãe ficou toda sorrisos. "É para tirar as suas dúvidas", ela disse. Mas que dúvidas?
Segundo presente, um jogo de tabuleiro. Outro?
Terceiro presente, um jogo de lápis de cor. Mas eu já tinha bastante isso...
Último presente, um boné sem graça.
Fui correndo para o banheiro chorar. Perguntei para a minha vó porque eu não ganhei nada que estava na listinha. Ela disse que tinha pedido autorização para a minha mãe para comprar aquelas coisas e ela não deixou nada. Eu chorei mais ainda. Quis dormir na casa da vovó porque estava muito irritada com a minha mãe para sequer ficar perto dela.
Acordei com o barulho da minha vó fazendo café. Fui meio sonolenta até a cozinha, onde haviam város pacotes de presente. Meu vô, que estava sentado lá, disse:
- Parece que o Papai Noel esqueceu alguns presentes no telhado ontem.
Tinham uns cinco pacotinhos ali. Abri um por um na maior pressa. O primeiro era um vestido.
O segundo, um livro de contos de fadas.
O terceiro, minha primeira Barbie.
O quarto, um conjunto de panelinhas de brinquedo.
O quinto, outra Barbie, mais chique, daquelas com o cabelo que muda de cor.
Dei o maior sorriso do mundo, mas pensei que assim que a minha mãe visse isso ia querer jogar tudo fora. Então minha vó os deixou na casa dela, e fui cada vez mais frequentemente para lá. Às vezes, dava saudade de jogar bola, videogame, correr, pular. Então era só ir para a casa da mamãe que eu podia brincar disso à vontade. Foi a primeira vez que eu me senti livre na vida.